elviradrummond_name Musicalização Educação Musical Literatura Infantil Práticas Instrumentais Artigos Home Saiba como comprar nossos livros Autora Fanpage Elvira Drummond Canal YouTube Elvira Drummond Descobrindo sons | A volta da Música às Escolas | Palavra também é brinquedo | O livro que faz ser livre | O encanto do conto cantado | O medo do medo

A palavra sempre encantou a criança. O que motiva um bebê a falar não é o simples fato de submetê-lo à exposição sonora de nosso idioma, mas, sobretudo, a necessidade do outro traduzida em sons. O desejo de comunicar-se é determinante no processo de aquisição da linguagem.

Patricia Kuhl, professora da Universidade de Washington, afirma que o som das palavras constrói circuitos neurais que estimulam a absorção de novas palavras. Quanto maior a variedade sonora apresentada à criança, maior será a ampliação de suas vias neurais.

Contar histórias para as crianças é um inigualável veículo para a exposição sonora de um idioma. O ato de contar histórias exige do contador uma sonoridade diferenciada na fala, que transcende a função do linguajar cotidiano. As intenções afetivas e os indicadores emocionais se apoderam da palavra, concedendo-lhe matizes e nuances que a história suscita para pontuar momentos de medo, tristeza, susto, alegria etc.

Ocorrem mudanças no ritmo da fala, ao contar que o personagem correu assustado; o tom de voz se altera, ficando mais forte, quando falamos de um súbito trovão; personagens delicados como um pintinho ou uma flor indefesa ganham um tom de voz mais aguda, adocicado, indicando fragilidade ou singeleza. Temos, portanto, uma verdadeira melodia embrionária no discurso do contador, enriquecendo, sobremaneira, a exposição sonora das palavras.

Se o discurso verbal é fortalecido pelas nuances da voz falada, o que dizer do discurso musical, que disponibiliza todos os recursos vocais inerentes a cada propriedade do som (altura, duração, timbre, intensidade)?

O canto é a exploração da voz em sua plenitude, fazendo uso de todo o potencial que caracteriza a linguagem musical. Como consequência, temos, naturalmente, uma expansão significativa das vias neurais.

Se, por um lado, o canto enriquece o conto, a recíproca é verdadeira, uma vez que o canto, quando inserido no contexto de uma história, é fortalecido pelo fato de vincular-se à situações carregadas de emoção.

Ao imaginarmos uma canção que ilustra a expectativa do encontro com o lobo ou com a bruxa, certamente, teremos uma música de caráter assustador, aterrorizante, opondo-se, naturalmente, a uma melodia que pontua a cena de uma princesa que brinca com borboletas no jardim.

A carga emocional, que acompanha cada situação da história, ajuda a determinar o caráter de cada canção. Desse modo, o discurso subjetivo dos sons torna-se transparente aos olhos dos pequenos, vindo carregado de emoções e intenções afetivas.

Mesmo reconhecendo que a linguagem musical tem vida própria e que o discurso melódico delineia, por si só, impressões ligadas ao campo do afeto, sabemos que há uma tendência natural da criança em corporificar os sons, transformando-os em animais, brinquedos e monstros, dotados de sentimentos e emoções. Essa audição associativa, de natureza claramente simbólica, é um excelente canal para iniciar a criança no processo de identificação e discriminação dos elementos constitutivos da linguagem musical.

Convém salientar que contos e cantos são expressões artísticas e, como manifestações de arte, lidam diretamente com a emoção, sendo, portanto, veículos preciosos de comunicação com a criança.

Sabemos que a criança interage com o mundo movida intensamente pelo plano emocional. As lacunas a serem preenchidas, ao longo de seu desenvolvimento, no plano cognitivo, são compensadas através de sua percepção sensorial, motivada pelo afeto e emoção.

Os grandes estudiosos da conduta infantil, a exemplo de Piaget, Vygotsky e Wallon, são unânimes em destacar a afetividade como mola mestra que impulsiona todas as demais áreas do desenvolvimento da criança.

Histórias e canções, sobretudo quando articuladas, são experiências estéticas singulares porque lidam com a emoção de forma diferenciada, proporcionando o gozo estético, que, por um lado revela nosso próprio eu, oportunizando vivenciar “por tabela” uma infinidade de emoções; por outro lado possibilita a criança estabelecer vínculos com o mundo exterior, aprendendo a lidar com as pessoas e com as várias maneiras de sentir e expressar de cada um.

Dentre as inúmeras possibilidades de se explorar as histórias cantadas – audição, sonorização, audição com intervenção (demonstrando ser capaz de identificar determinados elementos) etc. – destacamos o musical, como uma das formas mais completas de abordagem desse rico filão estético.

A experiência de participar de um musical abraça aspectos de fundamental importância no desenvolvimento infantil (expandindo-se às faixas etárias maiores!). Uma vez que temos, no musical, uma representação que envolve cenário, figurino e a ação de personagens, oportunizamos uma maneira singular de viver o “faz de conta”, corporificando o imaginário, transformando-o numa experiência concreta de grande valia para a criança.

Sobre o concretismo infantil, Wallon sugere que a ação deve proceder a reflexão, bem como o ato de demonstrar deve ocorrer antes de qualquer explicação.

O discurso musical, uma vez inserido numa representação teatral (podemos classificar o musical como “opereta despretenciosa”), ganha corpo e atinge uma dimensão altamente significativa, em que a arquitetura melódica, o fraseado, a base harmônica transformam-se em personagens, retratam sentimentos e desejos. (Convém ressaltar que aqui consideramos “musical” a história permeada de trechos cantados, elaborados, criteriosamente, para ilustrar determinadas passagens).

Finalmente, lembramos que o musical propicia uma experiência coletiva singular, uma vez que reúne crianças e adultos, vivendo juntos um prazer que abraça o lúdico, o estético e o humano.

Elvira Drummond
(Profa. da Universidade Federal do Ceará, Licenciada em Artes, Bacharel em piano e Mestre em Literatura).

* O Capim Encantado – narrativa folclórica, de origem portuguesa, bastante difundida na região Nordeste do Brasil. Circula em várias localidades com os mais diversos títulos, tais como: Capineiro de Meu Pai, A Menina Enterrada Viva, A Madrasta, Os figos da figueira, entre outros. Um caso raro de mito cristão, em que a presença da fada-madrinha (típica do mito pagão) é substituída por Nossa Senhora e, no lugar da mágica, vemos acontecer o milagre.

Consulta Bibliográfica
BEGLEY, Sharon. A importância da música para crianças. São Paulo: ABEMÚSICA, 2008.
COSTA, Clarice Moura. Os sons da vida e a constituição do sujeito in Psique – Ciência e Vida, n° 23. São Paulo: Ed. Escala, 2007 – ano II.
DRUMMOND, Elvira. Música e literatura em diálogo. Fortaleza: LMiranda Publicações, 2009.
KIEFER, Bruno. Elementos da linguagem musical. 3ª Ed. Porto Alegre: Movimento, 1973.
KOLLERT, Gunter. A origem e o futuro da palavra. São Paulo: Antroposófica, 1994.
WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Rio de Janeiro: Andes, [s/d].