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O sistema auditivo é a primeira ponte entre o feto e o mundo. A partir do 5º mês de vida uterina, o bebê é capaz de ouvir os sons que provém do meio exterior ao útero materno.

Estudos revelam a capacidade do feto de não apenas perceber, como, também, memorizar vozes, sobretudo, a voz materna, distinguindo-a dentre outras vozes femininas. Muito antes da fala ter sentido denotativo, isto é, das palavras serem compreendidas quanto ao seu significado, o bebê absorve a fala da mãe numa conotação musical, sentindo o ritmo, a cadência das palavras e as inflexões vocais, percebendo o colorido e as nuances próprias de seu idioma e, ainda, o que caracteriza e singulariza a voz da mãe.

O que motiva um bebê a falar não é o simples fato de submetê-lo à exposição sonora de nosso idioma, mas, sobretudo, a necessidade do outro traduzida em sons. O desejo de comunicar-se é determinante no processo de aquisição da linguagem.
A interação entre bebê e adulto – em especial suas principais figuras de apego (os pais, em geral) e professores, que, na etapa da educação infantil ocupam posição significativa – é de importância capital para delinear a leitura de mundo, nessa fase do desenvolvimento infantil.

É no convívio, sobretudo, com os adultos próximos à criança, que esta se torna capaz de traduzir o mundo, interpretar reações e sentimentos das pessoas, interagir com elementos próprios de sua cultura e de seu grupo social.

Na tarefa de traduzir o mundo, temos uma preciosa ferramenta: contar histórias. A história é um ensaio para a vida, em que o mundo “de mentirinha” exercita os pequenos, preparando-os para enfrentar com mais determinação as adversidades do mundo real.

As histórias disponibilizam uma visão panorâmica: a vida com todas as cores, sons, formas, sentimentos e atitudes.

Tendo em vista o fato de que a experiência auditiva da criança tem início em sua fase uterina, portanto, sua primeira interação com o mundo, sabemos o quão significativo é o conjunto de sons que a rodeia. Oportunizar uma rica exposição sonora, apresentando à criança uma boa diversidade de timbres é um meio eficaz de introduzi-la no convívio social. Podemos através de histórias, revelar diferentes ambientes sonoros: sons do campo, sons da cidade, sons de objetos e utensílios de uma casa, sons do corpo, sons de instrumentos musicais etc.

Desse modo, situamos a criança em diferentes espaços, utilizando o som como um meio de identificação ambiental, auxiliando a criança a estabelecer, desde cedo, categorias sonoras, ao mesmo tempo em que possibilitamos um desenvolvimento auditivo que, certamente, irá favorecer seu processo de aquisição da linguagem e, posteriormente, leitura e escrita, além de beneficiar, de modo significativo, o desenvolvimento da linguagem musical.

O compositor e educador musical canadense Shafer destaca a importância da inclusão de sons ambientais como conteúdo indispensável em um programa de educação musical. O reconhecimento auditivo de sons característicos de diferentes espaços é um inigualável treino de audição.

Os sons ambientais, uma vez contextualizados em uma história, são mais facilmente memorizados, porque a criança estabelece associações entre sons e narrativa, tornando a experiência mais significativa.

Há, também, razões de natureza sociocultural para tratarmos dessa relação sons ambientais/história com especial atenção. Freud, fundador da psicanálise, enfatiza que a construção da identidade ocorre mediante a relação estabelecida entre o indivíduo e o mundo a sua volta, atribuindo significado a cada experiência e objeto conhecido.

Inúmeros estudiosos do comportamento humano, cujos trabalhos se voltaram para a educação, a exemplo de Vygotsky, Piaget e Freinet, compartilham da opinião de que o ser humano se desenvolve mediante sua interação social, destacando o fato de que cada um atribui um significado particular as suas vivências.

É relevante o comentário de Patrícia Kuhl, professora da Universidade de Washington, ao afirmar que o som das palavras constrói circuitos neurais que estimulam a absorção de novas palavras. Quanto maior a variedade sonora apresentada à criança, maior será a ampliação de suas vias neurais.

A história é, mais uma vez, um singular veículo para a exploração da palavra. O ato de contar história exige do contador uma sonoridade diferenciada na fala, que transcende a função do linguajar cotidiano. As intenções afetivas e os indicadores emocionais se apoderam da palavra, concedendo-lhe matizes e nuances que a história suscita para pontuar momentos de medo, tristeza, susto, alegria etc. Ocorrem mudanças no ritmo da fala, na altura da voz, na inflexão da palavra, na intensidade de sílabas que conferem à linguagem verbal um colorido próprio, capaz de dar vida aos personagens e encantar a criança pela riqueza sonora, possibilitando aos pequenos a descoberta de novos sons.

Se o discurso verbal é fortalecido pelas nuances da voz falada, convém destacar as infinitas possibilidades do discurso musical, que disponibiliza todos os recursos vocais inerentes a cada propriedade do som (altura, duração, timbre, intensidade). O canto possibilita o uso da voz em sua plenitude, explorando todo o potencial que caracteriza a linguagem musical. Como consequência, temos, naturalmente, uma expansão significativa das vias neurais, ativando mecanismos cerebrais que resultam em crianças mais atentas e criativas.

A canção é uma forma de expressão completa. Os elementos que constituem o discurso musical estimulam as áreas vitais do ser humano. O ritmo, por exemplo, tem natureza dinamogênica, ou seja, estimula a ação, o movimento; a melodia – sucessão de sons, cujas relações intervalares compõem um todo significativo – tem caráter afetivo, toca nossa emoção; já a harmonia – concepção simultânea dos sons – instiga a área intelectual e promove um efeito total que aguça nossa sensibilidade estética.
A canção, portanto, tem natureza impactante, intervindo na ação, na emoção e na razão. Há canções que suscitam da criança a realização de gestos, movimentos ou, ainda, batimentos corporais; outras estimulam o relaxamento, a quietude, a contemplação; algumas instigam a comunicação com um parceiro (adulto ou criança), possibilitando a troca de gestos, olhares, movimentos sincronizados etc.

Finalmente, contos e cantos constituem um recurso ímpar, contribuindo de forma relevante na formação da criança, uma vez que promove a educação estética, que agrega, harmoniosamente, o lúdico, o fazer artístico e o humano.

 

Elvira Drummond
(Profa. da Universidade Federal do Ceará, Licenciada em Artes, Bacharel em piano e Mestre em Literatura).